quinta-feira, 30 de abril de 2020

Tabacaria - Fernando Pessoa

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo 

que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada 

constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr umidade nas paredes

e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça

de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa

e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos

e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho,

como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.


A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa,

Fui até ao campo com grandes propósitos.


Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.

Em que hei-de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa

que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.


Em todos os manicômios

há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza,

sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo,

ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.


Tenho apertado ao peito hipotético

mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem

a porta ao pé de uma parede sem porta

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.


Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.


Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


( Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica

no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas

não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates

com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata,

que é de folhas de estanho,

Deito tudo para o chão,

como tenho deitado a vida. )

 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.


Mas ao menos consagro a mim mesmo

um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.


( Tu, que consolas, que não existes

e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida

como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana,

impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores,

gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito,

decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do

tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno 

— não concebo bem o quê —,

Tudo isso, seja o que for,

que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos

invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua

com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios,

vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como

uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo. )

Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses

nem estudasses nem amasses nem cresses


( Porque é possível fazer a realidade

de tudo isso sem fazer nada disso )

 

Talvez tenhas existido apenas,

como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.


Conheceram-me logo por quem não era

e não desmenti, e perdi-me.


Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir

o dominó que não tinha tirado.


Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.


Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.


A certa altura morrerá a tabuleta também,

e os versos também.


Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.


Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas

qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos

e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo

como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa

ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.


Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos

em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica

é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.


Enquanto o Destino me conceder,

continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 

talvez fosse feliz.)


Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.


O homem saiu da Tabacaria 

( metendo troco na algibeira das calças? )


Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

( O Dono da Tabacaria chegou à porta. )

 

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus gritei-lhe 

Adeus ó Esteves!e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,

e o Dono da Tabacaria sorriu.

Poesia clássica de Fernando Pessoa
como Álvaro de Campos escrita em 15/10/1928
Recomendação do Prince: leia com calma e varias vezes !

quarta-feira, 29 de abril de 2020

A Cantada - Luis Fernando Verissímo

H: - Oi
M: - Oi
H: - Eu estava te olhando de longe... você vem sempre aqui?
M: - Só quando estou com vontade de fazer xixi. Quem te deixou entrar no banheiro das mulheres?
H: - Entrei escondido, queria falar com você.
M: - Não podia esperar eu terminar primeiro?
H: - É que eu sou muito ansioso... não é sempre que se encontra a mulher da nossa vida numa festa de formatura.
M: - Mulher da vida de quem?
H: - Da minha vida.
M: - Que espécie de maluco é você?
H: - O homem da sua vida!
M: - Como é que é?
H: - Sou o cara que nasceu pra casar e ter filhos com você.
M: - Essa é a sua melhor cantada?
H: - É sério... vamos conversar.
M: - Quer fazer o favor de fechar essa porta? Eu ainda não terminei.
H: - Desculpe. Um homem sabe quando avistou a mulher ideal. Geralmente ela é bonita, sexy, tem gostos refinados e inteligência suficiente para ignorar suas gracinhas. É fina, detesta vulgaridades.
M: - Me deixa vomitar em paz?
H: - Achei que você só estivesse apertada.
M: - O que eu faço no banheiro não é da sua conta...H: - Eu me importo com você.
M: - Socorro, tem um homem aqui dentro.
H: - Psiuuuuu, não grita, eu só quero saber seu nome.
M: - Eu to bêbada demais pra saber meu nome.
H: - Também estou um pouco tonto, confesso. Viu como a gente combina?
M: - Sai daqui e fecha essa porta antes que eu te jogue esse balde de lixo na cabeça.
H: - Algumas pessoas passam a vida toda procurando por um amor perfeito. Alguém que te complete e ajude no que for preciso, faça companhia em todos os momentos.
M: - Cara, como você é chato.
H: - Melhorou?
M: - Não acredito que você me assistiu fazendo aquilo.
H: - Foi a coisa mais linda que eu já vi.
M: - Acorda, seu idiota. Eu botei um pão de batata pra fora.
H: - Eu também adoro pão de batata com tequila.
M: - Espirrou em você, seu porco.
H: - Eu não ligo. Seu vômito é o meu vômito.
M: - O que eu fiz pra merecer um maluco desses atrás de mim?
H: - Tem coisas que só o destino pode explicar.
M: - De que planeta você veio? Larga do meu pé, chulé.
H: - Só você não percebeu que isso tudo não foi por acaso.
M: - Você me seguiu, eu pedi ajuda, ninguém te tirou do banheiro, eu te dei
um banho de bolo de chocolate e cerveja.

H: - Nosso primeiro encontro...
M: - Nada disso é um encontro. Sai da minha frente.
H: - Não posso abandonar a mulher da minha vida.
M: - Que papo é esse? Deixa-me ver o que colocaram no seu whisky?
H: - É sério, nunca ouviu falar nisso?
M: - Whisky com bolinha alucinógena? É claro que sim. Nunca aceite o copo de um estranho.
H: - Nós somos o casal ideal. Nascemos um pro outro. Sabe quais são as chances disso acontecer numa festa de formatura? Uma em cada 150 milhões.
M: - Bem menores do que as chances de eu te dar uma porrada.
H: - Você não faria isso com seu futuro marido.
M: - Vamos do começo... Um: eu já tenho namorado. Dois: você não faz meu tipo. Três: isso não é uma festa de formatura. É a festa de 15 anos da Mariade Fátima. O segredo da relação perfeita está na identificação de sua alma gêmea. Geralmente ela é loira, alta e tem um piercing no nariz. Pode também não ser nada disso. Não importa. O grande lance é perceber se essa alma combina com a sua, tem gostos iguais, beijo bom e, de preferência, um cabelo sem gel.
H: - Quer apostar que nós nascemos um pro outro?
M: - Ridículo... vou ficar com peso na consciência.
H: - Por que não tenta? Fala uma cor.
M: - Preto.
H: - A ausência de todas as cores... A minha preferida também.
M: - Que bobagem.
H: - Um filme.
M: - "101 Dálmatas".
H: - O mesmo que o meu... Quer prova mais definitiva?
M: - Eu nunca vi esse filme na minha vida.
H: - Roubar não vale.
M: - Que papinho mais furado... Se toca, eu não fui com a sua cara.
H: - Última chance. Fala uma música.
M: - Ai que saco... Qualquer uma do Daniel.
H: - Daniel? Tem certeza?
M: - Absoluta.
H: - Então você tem razão... minha mulher ideal não gosta de música sertaneja.
M: - É mesmo? E que som ela curte?
H: - Rock, alguma coisa de Jazz... dependendo do dia, MPB.
M: - O que tem de errado com Leandro e Leonardo, KLB, é o Tchan?
H: - Nada, só não é mulher pra mim. De qualquer forma, foi um prazer. Todo mundo erra. Quem nunca pensou ter encontrado o grande amor e depois descobriu que ele roncava, tinha caspa e não era muito chegado a banho no inverno? Se fosse fácil não teria graça. O importante é não desanimar, e não foi dessa vez, partir pra outra. Tente declamar seu poema predileto em praça pública e espere alguém completá-lo. Se ninguém se manifestar, saia correndo. Podem ter chamado a polícia.
M: - Espera.
H: - O que foi?
M: - Eu também gosto de MPB. Minha mãe ouve Chico Buarque o dia inteiro.
Tecnicamente, se eu estou em casa, também ouço.

H: - Não sei... Acho que foi um engano.
M: - Como você pode saber?
H: - Olhando bem... você é mais alta do que eu imaginava. A mulher da minha
vida tem 1,60 de altura. Foi um prazer.
M: - Espera, eu estou de salto. Olha só... fiquei mais baixa.
H: - Você não tem nada a ver comigo.
M: - Tenho sim.H: - Que interesse repentino pela minha pessoa... Até um minuto atrás você
queria que eu fosse embora.
M: - Também não sei o que me deu.
H: - Você tomou do meu whisky, foi isso?
M: - Não... quer dizer, não lembro.
H: - Cadê seu namorado?
M: - Está na minha frente, com uma coisa esquisita na camisa.
H: - Que nojo... o que mais você comeu, hein?
M: - Miojo, antes de sair de casa.
H: - Eu não posso ser seu namorado, você já tem um.
M: - Eu menti.
H: - Só pra me dar o fora? Conseguiu. Tchau.
M: - Volta aqui, meu amor. Pega uma vodka pra mim.
H: - Sai de perto de mim, sua louca.
M: - Só saio daqui casada.
H: - Socorro.
M: - Achei o homem da minha vida!!!


Luís Fernando Veríssimo

segunda-feira, 27 de abril de 2020

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Sonhos impensados - Prince Cristal

Vidas num encontro adorável
Caminhos opostos
Destinos cruzados
Encontros marcados
Sonhos impensados

Desejos

loucuras de uma flor
que tenta brotar
num novo amor.

sábado, 18 de abril de 2020

Não te amo mais - leia 2 vezes

Não te amo mais.

Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.

Tenho certeza que
Nada foi em vão.

Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.

Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.

Sinto cada vez mais que 
Já te esqueci!

E jamais usarei a frase
EU TE AMO!

Sinto, mas tenho que dizer a verdade 
É tarde demais...

Agora leia de baixo para cima
Texto erradamente creditado a Clarisse Lispector.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Destino - Prince Cristal

 
Destino nas suas mãos,
Para que medo,
se não precisa ter razão!

Entrega seu coração,
sua vida,
sua compreensão.

Esquece o pensar,
apenas sente, e por fim, 
conseguirá,
aproveitar.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Eu queria - Mario Quintana

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…

Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos
para as ouvir…

Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel!

Trago-te palavras, apenas…
e que estão escritas
do lado de fora do papel… 

Não sei, eu nunca soube o que dizer-te
e este poema vai morrendo,
ardente e puro, ao vento da Poesia…
como uma pobre lanterna que incendiou! 

Mário Quintana