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segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Frases Especiais - Fernando Pessoa

ESCOLHIDAS ESPECIALMENTE PELO PRINCE CRISTAL

"Todas as cartas de amor são ridículas (...) Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas."

"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia."

"Navegar é preciso, viver não é preciso."

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar."

"O poeta é um fingidor."

"Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce."

"Eu sou do tamanho do que vejo... E não do tamanho de minha altura."

"Não há normas. Todos os homens são excepção a uma regra que não existe".

"Não sou do tamanho da minha altura, mas da estatura daquilo que posso ver."

"Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo."

"A diferença entre Deus e nós deve ser não de atributos, mas da própria essência do ser. Ora tudo é o que é. Portanto Deus é não só o que é mas também o que não é. Confunde-nos de Si com isso".

"Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do coletivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo".

"Do indivíduo temos que partir, ainda que seja para o abandonar".

"De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos."

"Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala. O mais é nada."

"Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta."


Em lembrança da sua data de partida em 30/11/1935

sábado, 28 de novembro de 2020

O que Sentimos - Fernando Pessoa

O que sentimos, 
não o que é sentido,
É o que temos.

Claro, o inverno triste
Como à sorte o acolhamos.
Haja inverno na terra, não na mente.

E, amor a amor, ou livro a livro, amemos
Nossa caveira breve.

Fernando Pessoa
como Ricardo Reis

sábado, 21 de novembro de 2020

Mestre - Fernando Pessoa

Mestre, são plácidas 
Todas as horas 
Que nós perdemos, 
Se no perdê-las, 
Qual numa jarra, 
Nós pomos flores. 

Não há tristezas 
Nem alegrias 
Na nossa vida. 
Assim saibamos, 
Sábios incautos, 
Não a viver, 

Mas decorrê-la, 
Tranquilos, plácidos, 
Lendo as crianças 
Por nossas mestras, 
E os olhos cheios 
De Natureza ... 

À beira-rio, à beira-estrada, 
Conforme calha, sempre no mesmo 
Leve descanso de estar vivendo. 

O tempo passa, não nos diz nada. 
Envelhecemos. 
Saibamos, quase maliciosos, 
Sentir-nos ir. 

Não vale a pena fazer um gesto. 
Não se resiste ao deus atroz.
Que os próprios filhos devora sempre. 

Colhamos flores. 
Molhemos leves as nossas mãos 
Nos rios calmos, para aprendermos 
Calma também. 

Girassóis sempre 
Fitando o sol, da vida iremos 
Tranquilos,tendo nem o remorso 
De ter vivido. 

Fernando Pessoa como Ricardo Reis em 12/06/1914

sábado, 14 de novembro de 2020

A falência do Prazer e do Amor - Fernando Pessoa

O texto é com longo 23 partes, mas recomendo ler ...

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas
[...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.

Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.

Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.

Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.

II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n'alma essa alegria!
[...]
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
[...]
pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
[...]
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo
[...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.

III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.

IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser...

Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.

Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto... Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere
[...]
Sinto como um insulto esta alegria
Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.

VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII
tua inconsciência alegre é uma ofensa
para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas...
[...]
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
[...]
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte, roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos!
[...]

VIII
Triste horror d'alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co'a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.

Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.

Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.

Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza
[...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.

Mas a dor é maior!

IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa ...
[...]
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.

Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
[...]
Deus pessoal, Deus gente, dos que creem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.

X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!

XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.

XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém...
[...]
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a ideia
De gastar e gastar inutilmente
Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.

Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.

Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino.

De raivas contra a essência do viver.

XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo
[...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.

E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.

Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.

Do mais. Pensar em dizer "amo-te"
E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.

XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]

XX
É isto o amor? Só isto?
[...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.

Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva
[...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.

Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos...

XXI
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
[...]
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
[...]
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.

Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas
[...]
... Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
[...]
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
[...]
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
[...]
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
[...]
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!

Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
[...]

XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.

XXIII 
Reza por mim! A mais não me enterneço. 
Só por mim mesmo sei enternecer-me, 
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive. 
Reza por mim, por mim! Eis a que chega 
A minha tentativa [em] querer amar.

Fernando Pessoa

sábado, 7 de novembro de 2020

Ausência - Fernando Pessoa

Mesmo a ausência dela 
é uma coisa que está comigo.

E eu gosto tanto dela 
que não sei como a desejar
Se a não vejo,
imagino-a e sou forte 
como as árvores altas.

Mas se a vejo tremo,
não sei o que é feito do que sinto 
na ausência dela.

Fernando Pessoa

sábado, 31 de outubro de 2020

Isto - Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto

tudo o que escrevo.

Não. Eu simplesmente sinto

com a imaginação. Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

o que me falha ou finda,

é como que um terraço

sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

do que não está ao pé,

livre do meu enleio,

Sério de que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa como Bernardo Soares
Quadro de William Bouguereau - Head of a young girl

sábado, 12 de setembro de 2020

Ah, só eu sei - Fernando Pessoa

Ah, só eu sei 
Quanto dói meu coração 
Sem fé nem lei, 
Sem melodia, nem razão.

Só eu, só eu, 
E não o posso dizer 
Porque sentir é como o céu 
Vê-se, mas não há nele que ver. 

Fernando Pessoa
Quadro de William Bouguereau - Leveil du Coeur

sábado, 25 de julho de 2020

Meus amigos - Fernando Pessoa

Meus amigos são todos assim:
metade loucura, outra metade santidade. 

Escolho-os não pela pele, mas pela pupila,
que tem que ter brilho questionador
e tonalidade inquietante. 

Escolho meus amigos pela cara lavada
e pela alma exposta. 

Não quero só o ombro ou o colo,
quero também sua maior alegria. 

Amigo que não ri junto,
não sabe sofrer junto. 

Meus amigos são todos assim:
metade bobeira, metade seriedade. 

Não quero risos previsíveis,
nem choros piedosos. 

Quero amigos sérios,
daqueles que fazem da realidade
sua fonte de aprendizagem,
mas lutam para que a fantasia não desapareça. 

Não quero amigos adultos, nem chatos. 
Quero-os metade infância e outra metade velhice. 
Crianças, para que não esqueçam
o valor do vento no rosto,
e velhos, para que nunca tenham pressa. 

Tenho amigos para saber quem eu sou,
pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos,
nunca me esquecerei de que a normalidade
é uma ilusão imbecil e estéril. 

Fernando Pessoa

sábado, 4 de julho de 2020

Livro do Desassossego - Fernando Pessoa

Por que hás-de tentar ser como os outros, se estás condenado a ti? 

Para que hás-de rir, se, quando ris, a tua própria alegria sincera é falsa, porque nasce de te esqueceres de quem és? 

Para que hás-de chorar, se sentes que de nada te serve, e choras mais as lágrimas não te consolarem, que porque as lágrimas te consolem? 

Se és feliz quando ris, quando ris venci; se então és feliz, porque te não lembras de quem és, quão mais feliz serás comigo, onde não mais te lembrarás de nada? 

Se descansas perfeitamente, se acaso dormes sem sonhar, como não descansarás no meu leito, onde o sono nunca tem sonhos? 

Se um momento te elevas, porque vês a Beleza, e te esqueces de ti e da vida, como não te elevarás no meu palácio, cuja beleza noturna não sofre discordância, nem idade, nem corrupção; nas minhas salas onde nenhum vento perturba os reposteiros, nenhum pó cobre os espaldares, nenhuma luz desbota, pouco a pouco, os veludos e os estofos, nenhum tempo amarelece a brancura dos ornatos brancos. 

Vem ao meu carinho, que não sofre mudança; ao meu amor, que não tem cessação! Bebe da minha taça, que não se esgota, o néctar supremo que não enjoa nem amarga, que não desgosta nem inebria. 

Contempla, da janela do meu castelo, não o luar e o mar, que são coisas belas e por isso imperfeitas; mas a noite vasta e materna, o esplendor indiviso do abismo profundo! 

Nos meus braços esquecerás o próprio caminho doloroso que te trouxe a eles. 

Fernando Pessoa como Bernardo Soares 
Livro do desassossego 
Recomendação de leitura para todos que buscam seu verdadeiro eu.

sábado, 13 de junho de 2020

Diário da vida de Fernando Pessoa

Uma breve cronologia do escritor Fernando Pessoa,
em forma de diário no seu dia de nascimento...

1888, 13 de Junho - Isto não é algo que me lembre mas dizem que neste dia, em Lisboa, nasci. Acreditemos.

1894 - Tinha eu 6 anos, e como criança criativa que era, criei o meu primeiro heterônimo: Chevalier de Pas !

1895 - O heterônimo surgiu antes, os poemas seguiram-se. Escrevo o meu primeiro poema intitulado À Minha Querida Mamã. 

Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti. 

1896 - Fui com a mamãe e um tio-avô para Durban. 

1897 - Fiz o curso primário na escola de freiras irlandesas da West Street. No mesmo instituto, fiz a primeira comunhão. 
1899 - Ingressei na Durban High School e criei o heterônimo Alexander Search. 

1902 - Retornei a Lisboa em junho. Em setembro, voltei sozinho para a África do Sul. Tentando escrever romances em inglês. 

1904 - Terminei meus estudos na África do Sul. 

1905 - Voltei de vez para Lisboa, morando com minha tia. 

1912 - Estreei como crítico literário, provocando polêmicas junto à intelectualidade portuguesa. 

1913 - Iniciei minha produção literária. Escrevi O Marinheiro.

1914 - Já feito homem, este ano foi especialmente importante na minha carreira. Criei os meus três heterônimos mais famosos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro. Heterônimos, para os mais leigos nesta matéria de escrita, são personagens que criei, que assinam os livros por mim, cada uma possuidora de personalidades distintas. 

Também escrevo duas, modéstia à parte e segundo me dizem, obras primas: O Guardador de Rebanhos e O Livro do Desassossego.

1918 - Conhecem a revista Times? Neste ano publicam poemas meus nesta revista. Mal posso acreditar! em 1920, conheci Ophélia Queiroz. 

1921 - Fundei a editora Olisipo, onde publiquei poemas em inglês e em 1925 morreu minha mãe . 

1929 - Voltei a me relacionar com Ophélia e em 1931 terminei novamente com ela. 

1934 - Sinto a morte próxima... No entanto, o pouco tempo que me parece restar é compensado por uma inspiração quase demoníaca. Neste ano é publicada A Mensagem, a minha mais importante obra. 

1935 - Esta parte não posso escrever mas neste ano sou internado com o diagnóstico de cólica hepática. A minha última frase escrita, em inglês, é "I know not what tomorrow will bring". No dia 30 de Novembro faleci, ou como expresso na minha obra, fui conhecer os seres superiores. 
 
Adaptação de FEITOSA, Soares 
Fernando Pessoa - Cronologia da vida
Prince Cristal se inspira em Fernando Pessoa

sábado, 30 de maio de 2020

Não há homens salvadores - Fernando Pessoa


Não há homens salvadores.
Não há Messias.
O máximo que um grande homem pode ser
é um estimulador de almas,
 um despertador de energias alheias.

 Salvar um homem a um povo inteiro 
como o poderá fazer,
se esse povo inteiro
não fizer por salvar-se, isto é,
se esse povo inteiro
não quiser ser salvo?

Somos todos impermanentes e ignorantes.
Prince Cristal

Poesia bem atual, no mundo que vivemos
escrita por Fernando Pessoa em 1930
O defeito, a fraqueza, do sebastianismo tradicional…

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Segue o teu destino - Fernando Pessoa

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Fernando Pessoa como Ricardo Reis em 1916

domingo, 3 de maio de 2020

Vivem em nós inúmeros - Fernando Pessoa

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.

Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma
Há mais eus do que eu mesmo.

Existo todavia
Indiferente a todos
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.

Ignoro-os. 
Nada ditam
A quem me sei: eu escrevo.

Poesia de Fernando Pessoa como Ricardo Reis, em 13-11-1935. 

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Tabacaria - Fernando Pessoa

 

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo 

que ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada 

constantemente por gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,

Com a morte a pôr umidade nas paredes

e cabelos brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça

de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa

e este lado da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos

e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho,

como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.


A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa,

Fui até ao campo com grandes propósitos.


Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.

Em que hei-de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa

que não pode haver tantos!

Gênio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.


Em todos os manicômios

há doidos malucos com tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza,

sou mais certo ou menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo,

ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.


Tenho apertado ao peito hipotético

mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem

a porta ao pé de uma parede sem porta

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.


Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.


Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


( Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica

no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas

não ensinam mais que a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates

com a mesma verdade com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata,

que é de folhas de estanho,

Deito tudo para o chão,

como tenho deitado a vida. )

 

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.


Mas ao menos consagro a mim mesmo

um desprezo sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.


( Tu, que consolas, que não existes

e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida

como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana,

impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores,

gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito,

decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do

tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno 

— não concebo bem o quê —,

Tudo isso, seja o que for,

que sejas, se pode inspirar que inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos

invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua

com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios,

vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como

uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo. )

Vivi, estudei, amei, e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses

nem estudasses nem amasses nem cresses


( Porque é possível fazer a realidade

de tudo isso sem fazer nada disso )

 

Talvez tenhas existido apenas,

como um lagarto a quem cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.


Conheceram-me logo por quem não era

e não desmenti, e perdi-me.


Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir

o dominó que não tinha tirado.


Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal-entendendo.


Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.


A certa altura morrerá a tabuleta também,

e os versos também.


Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.


Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas

qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos

e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo

como o sono de mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa

ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.


Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos

em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica

é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.


Enquanto o Destino me conceder,

continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 

talvez fosse feliz.)


Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.


O homem saiu da Tabacaria 

( metendo troco na algibeira das calças? )


Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

( O Dono da Tabacaria chegou à porta. )

 

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus gritei-lhe 

Adeus ó Esteves!e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,

e o Dono da Tabacaria sorriu.

Poesia clássica de Fernando Pessoa
como Álvaro de Campos escrita em 15/10/1928
Recomendação do Prince: leia com calma e varias vezes !