sábado, 29 de abril de 2023

Todo Risco - Damario Dacruz




A possibilidade de arriscar
é que nos faz homens.

Voo perfeito
no espaço que criamos.

Ninguém decide
sobre os passos que evitamos.

Certeza
de que não somos pássaros
e que voamos.

Tristeza
de que não vamos
por medo dos caminhos...


Damario Dacruz

sábado, 20 de março de 2021

Águas de Março - Elis Regina & Tom Jobim


É o pau, é a pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba no campo, é o nó da madeira
Caingá candeia, é o matita-pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento vetando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da ciumeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de a tiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto um desgosto, é um pouco sozinho
É um estepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É um pingo pingando, é uma conta, é um ponto
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manha, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terça
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
Pau, erda
Im, inho
Esto, oco
Oco, inho
Aco, idro
Ida, ol
Oite, orte
Aço, zol
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Não passo pela Vida - Charles Chaplin

Já perdoei erros quase imperdoáveis, 
tentei substituir pessoas insubstituíveis 
e esquecer pessoas inesquecíveis. 

Já fiz coisas por impulso, 
já me decepcionei com pessoas 
quando nunca pensei me decepcionar, 
mas também decepcionei alguém. 

Já abracei pra proteger, 
já dei risada quando não podia, 
fiz amigos eternos, 
amei e fui amado, 
mas também já fui rejeitado, 

Fui amado e não amei. 

Já gritei e pulei de tanta felicidade, 
já vivi de amor e fiz juras eternas, 
"quebrei a cara" muitas vezes! 

Já chorei ouvindo música e vendo fotos, 
já liguei só pra escutar uma voz, 
me apaixonei por um sorriso, 
já pensei que fosse morrer de tanta saudade 
e tive medo de perder alguém especial 
(e acabei perdendo)! 

Mas vivi! 
E ainda vivo! 
Não passo pela vida... 

Bom mesmo é ir à luta com determinação, 
abraçar a vida e viver com paixão, 
perder com classe e vencer com ousadia, 
porque o mundo pertence a quem se atreve 
e a vida é MUITO para ser insignificante. 

Charles Chaplin

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Abraço - Anais Nin

Os braços foram-me tirados, cantava.
Fui punida por abraçar, abracei.

Prendi nos momentos 
mais belos da minha vida.

Fechei nas mãos a plenitude
de cada hora os braços apertados
no desejo de abraçar. 

Quis abraçar a luz, o vento,
o sol, a noite, o mundo inteiro
e quis retê-los.

Quis acariciar,
curar, embalar,
envolver, cercar.

Forcei-os e prendi
de tal modo
que se partiram...
partiram de mim

Anaïs Nin

sábado, 16 de janeiro de 2021

Separação - Vinicius de Moraes

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. 

No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. 

Ela o olhava com um olhar intenso onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles. 

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. 

Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. 

Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. 

Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles das mundos que eram ele e ela. 

Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se multo longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce. 

Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. 

Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. 

Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. 

E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. 

Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias - um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas. 

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde… 

Vinicius de Moraes

sábado, 9 de janeiro de 2021

Sobre a dor - Kahlil Gibran

E uma mulher falou e disse,
Fala-nos da Dor...
E ele respondeu:

A vossa dor é o quebrar da concha
que envolve a vossa compreensão.

Assim como o caroço da fruta
tem de fender-se para que o seu coração
fique exposto ao sol,
também vós deveis conhecer a dor.

E se conseguisses maravilhar-vos 
com os milagres diários da vossa vida,
a vossa dor não vos pareceria menos intensa
do que a vossa alegria.

E aceitareis as estações do vosso coração,
tal como haveis aceite as estações
que passam sobre o vossos campos.

E passareis com serenidade
os invernos das vossas mágoas.

Muita da vossa dor é escolhida por vós.
É a poção amarga com a qual o médico
dentro de vós cura o vosso interior doente.

Por isso confiai no médico
e bebei o seu remédio em silêncio e tranquilidade:
Pois a sua mão, embora dura e pesada,
é guiada pela mão terna do Invisível.

E o cálice que ele vos dá,
embora possa queimar os vossos lábios,
foi feito com o gesso que o Oleiro umedeceu 
com as suas lágrimas sagradas.

O Profeta - Kahlil Gibran

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Agir ou não agir? - Prince Cristal

Na filosofia oriental toda a atividade do homem é trágica,
cheia de culpa ou Karma porque quem age é o EGO.

EGO é uma ilusão funesta
EGO é negativo e tomado de culpa e maldade. 

Estamos então, sempre diante
de um dilema inevitável:
Agir e nos onerarmos de culpa ou
não agir e assim nos preservar da culpa.

Mas existe uma terceira opção:

Agir sem nos onerar de culpa.
Agir por amor ao EU VERDADEIRO e não ao EGO. 

Você veio ao mundo como um quadro em branco...
foi formado e condicionado a perceber
de maneira consistente com as experiências que teve
com as pessoas com quem se associou.

Todo mundo tem uma escolha na vida:
criador ou critico,
amoroso ou rancoroso,
doador ou tomador.

Por mais paradoxal que seja,
quando você muda seu modo de pensar,
você muda sua vida. 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Feliz Natal - Prince Cristal

Desejo um Feliz Natal dos
sonhos realizados
e objetivos alcançados. 

Natal não é só festa,
nele a vida floresce...
quando a gente agradece. 

Mesmo vivenciando alguma dor
possamos perceber uma linda flor
em uma poesia de amor

Que sua vida seja estimulante
encontrando algo deslumbrante
em seu sonho verdejante....

domingo, 20 de dezembro de 2020

Alimente seus sonhos - Prince Cristal

Alimente seus sonhos
ame todas as horas
sonhe noites e dias
com brilho de estrelas vadias.

Alimente seus sonhos
com o coração tonto
busque o reencontro
no poema em contraponto.

Alimente seus Sonhos
compartilhe Felicidade
valorizando Bondade
com Amor de verdade.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Cântico dos Cânticos - Salomão

      O mais belo dos Cânticos de Salomão

Ah! Beija-me com os beijos de tua boca! Porque os teus amores são mais deliciosos que o vinho, e suave é a fragrância de teus perfumes; o teu nome é como um perfume derramado: por isso, amam-te as jovens.

Arrasta-me após ti; corramos! O rei introduziu-me nos seus aposentos. Exultaremos de alegria e de júbilo em ti. Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta razão há de te amar!

Sou morena, mas sou bela, ó filhas de Jerusalém, como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão.

Não repareis em minha tez morena, pois fui queimada pelo sol. Os filhos de minha mãe irritaram-se contra mim; puseram-me a guardar as vinhas, mas não guardei a minha própria vinha.

Dize-me, ó tu, que meu coração ama, onde apascentas o teu rebanho, onde o levas a repousar ao meio-dia, para que eu não ande vagueando junto aos rebanhos dos teus companheiros.

Se não o sabes, ó tu, a mais bela das mulheres, vai, segue as pisadas das ovelhas e apascenta os cabritos junto às cabanas dos pastores.

À égua dos carros do faraó eu te comparo, ó minha amada.

Tuas faces são graciosas entre os brincos, e o teu pescoço entre colares de pérolas.

Faremos para ti brincos de ouro com glóbulos de prata.

Enquanto o rei descansa em seu divã, meu nardo exala o seu perfume.

O meu bem-amado é para mim como um saquitel de mirra que repousa entre os meus seios; o meu bem-amado é para mim um cacho de uvas nas vinhas de Engadi.

Como és formosa, amada minha! Como és bela! Teus olhos são como pombas. Como és belo, meu amado! Como és encantador! O nosso leito é um leito verdejante.

As vigas de nossa casa são de cedro, suas traves, de cipreste!

Cântico dos Cânticos, 1 - Bíblia Católica Online
Quadro de William Bouguereau - Le Baiser

segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Frases Especiais - Fernando Pessoa

ESCOLHIDAS ESPECIALMENTE PELO PRINCE CRISTAL

"Todas as cartas de amor são ridículas (...) Mas, afinal, só as criaturas que nunca escreveram cartas de amor é que são ridículas."

"O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia."

"Navegar é preciso, viver não é preciso."

"Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar."

"O poeta é um fingidor."

"Deus quer, o Homem sonha, a obra nasce."

"Eu sou do tamanho do que vejo... E não do tamanho de minha altura."

"Não há normas. Todos os homens são excepção a uma regra que não existe".

"Não sou do tamanho da minha altura, mas da estatura daquilo que posso ver."

"Sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo."

"A diferença entre Deus e nós deve ser não de atributos, mas da própria essência do ser. Ora tudo é o que é. Portanto Deus é não só o que é mas também o que não é. Confunde-nos de Si com isso".

"Nenhuma ideia brilhante consegue entrar em circulação se não agregando a si qualquer elemento de estupidez. O pensamento colectivo é estúpido porque é colectivo: nada passa as barreiras do coletivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo".

"Do indivíduo temos que partir, ainda que seja para o abandonar".

"De sonhar ninguém se cansa, porque sonhar é esquecer, e esquecer não pesa e é um sono sem sonhos em que estamos despertos."

"Circunda-te de rosas, ama, bebe e cala. O mais é nada."

"Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida, o maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta."


Em lembrança da sua data de partida em 30/11/1935

sábado, 28 de novembro de 2020

O que Sentimos - Fernando Pessoa

O que sentimos, 
não o que é sentido,
É o que temos.

Claro, o inverno triste
Como à sorte o acolhamos.
Haja inverno na terra, não na mente.

E, amor a amor, ou livro a livro, amemos
Nossa caveira breve.

Fernando Pessoa
como Ricardo Reis

sábado, 21 de novembro de 2020

Mestre - Fernando Pessoa

Mestre, são plácidas 
Todas as horas 
Que nós perdemos, 
Se no perdê-las, 
Qual numa jarra, 
Nós pomos flores. 

Não há tristezas 
Nem alegrias 
Na nossa vida. 
Assim saibamos, 
Sábios incautos, 
Não a viver, 

Mas decorrê-la, 
Tranquilos, plácidos, 
Lendo as crianças 
Por nossas mestras, 
E os olhos cheios 
De Natureza ... 

À beira-rio, à beira-estrada, 
Conforme calha, sempre no mesmo 
Leve descanso de estar vivendo. 

O tempo passa, não nos diz nada. 
Envelhecemos. 
Saibamos, quase maliciosos, 
Sentir-nos ir. 

Não vale a pena fazer um gesto. 
Não se resiste ao deus atroz.
Que os próprios filhos devora sempre. 

Colhamos flores. 
Molhemos leves as nossas mãos 
Nos rios calmos, para aprendermos 
Calma também. 

Girassóis sempre 
Fitando o sol, da vida iremos 
Tranquilos,tendo nem o remorso 
De ter vivido. 

Fernando Pessoa como Ricardo Reis em 12/06/1914

sábado, 14 de novembro de 2020

A falência do Prazer e do Amor - Fernando Pessoa

O texto é com longo 23 partes, mas recomendo ler ...

I
Beber a vida num trago, e nesse trago
Todas as sensações que a vida dá
Em todas as suas formas
[...]
Dantes eu queria
Embeber-me nas árvores, nas flores,
Sonhar nas rochas, mares, solidões.

Hoje não, fujo dessa idéia louca:
Tudo o que me aproxima do mistério
Confrange-me de horror. Quero hoje apenas
Sensações, muitas, muitas sensações,
De tudo, de todos neste mundo — humanas,
Não outras de delírios panteístas
Mas sim perpétuos choques de prazer
Mudando sempre,
Guardando forte a personalidade
Para sintetizá-las num sentir.

Quero
Afogar em bulício, em luz, em vozes,
— Tumultuárias [cousas] usuais —
o sentimento da desolação
Que me enche e me avassala.

Folgaria
De encher num dia, [...] num trago,
A medida dos vícios, inda mesmo
Que fosse condenado eternamente
Loucura! — ao tal inferno,
A um inferno real.

II
Alegres camponeses, raparigas alegres e ditosas,
Como me amarga n'alma essa alegria!
[...]
Nem em criança, ser predestinado,
Alegre eu era assim; no meu brincar,
Nas minhas ilusões da infância, eu punha
O mal da minha predestinação.
[...]
pouco importa!
Sofrer mais já não posso. Pois verei
Eu, Fausto — aqueles que não sentem bem
Toda a extensão da felicidade,
Gozá-la?
[...]
Ferve a revolta em mim
Contra a causa da vida que me fez
Qual sou. E morrerei e deixarei
Neste inundo isto apenas: uma vida
Só prazer e só gozo, só amor,
Só inconsciência em estéril pensamento
E desprezo
[...]
Mas eu como entrarei naquela vida?
Eu não nasci para ela.

III
Melodia vaga
Para ti se eleva
E, chorando, leva
O teu coração,
Já de dor exausto,
E sonhando o afaga.
Os teus olhos, Fausto,
Não mais chorarão.

IV
Já não tenho alma. Dei-a à luz e ao ruído,
Só sinto um vácuo imenso onde alma tive...
Sou qualquer cousa de exterior apenas,
Consciente apenas de já nada ser...

Pertenço à estúrdia e à crápula da noite
Sou só delas, encontro-me disperso
Por cada grito bêbedo, por cada
Tom da luz no amplo bojo das botelhas.

Participo da névoa luminosa
Da orgia e da mentira do prazer.
E uma febre e um vácuo que há em mim
Confessa-me já morto... Palpo, em torno
Da minha alma, os fragmentos do meu ser
Com o hábito imortal de perscrutar-me.

V
Perdido
No labirinto de mim mesmo, já
Não sei qual o caminho que me leva
Dele à realidade humana e clara
Cheia de luz [...] alegremente
Mas com profunda pesadez em mim
Esta alegria, esta felicidade,
Que odeio e que me fere
[...]
Sinto como um insulto esta alegria
Toda a alegria. Quase que sinto
Que rir, é rir — não de mim, mas, talvez,
Do meu ser.

VI
Toda a alegria me gela, me faz ódio.
Toda a tristeza alheia me aborrece,
Absorto eu na minha, maior muito que outras
[...]
Sinto em mim que a minha alma não tolera
Que seja alguém do que ela mais feliz;
O riso insulta-me, por existir;
Que eu sinto que não quero que alguém ria
Enquanto eu não puder. Se acaso tento
Sentir, querer, só quero incoerências
De indefinida aspiração imensa,
Que mesmo no seu sonho é desmedida ...

VII
tua inconsciência alegre é uma ofensa
para mim. O seu riso esbofeteia-me!
Tua alegria cospe-me na cara!
Oh, com que ódio carnal e espiritual
escarro sobre o que na alma humana
Fria festas e danças e cantigas...
[...]
Com que alegria minha, cairia
Um raio entre eles! Com que pronto
Criaria torturas para eles
Só por rirem a vida em minha cara
E atirarem à minha face pálida
O seu gozo em viver, a poeira — que arda
Em meus olhos — dos seus momentos ocos
De infância adulta e tudo na alegria!
[...]
Ó ódio, alegra-me tu sequer!
Faze-me ver a Morte, roendo a todos,
Põe-me ria vista os vermes trabalhando
Aqueles corpos!
[...]

VIII
Triste horror d'alma, não evoco já
Com grata saudade, tristemente,
Estas recordações da juventude!
Já não sinto saudades, como há pouco
Inda as sentia. Vai-se-me embotando,
Co'a força de pensar, contínuo e árido,
Toda a verdura e flor do pensamento.

Ao recordar agora, apenas sinto,
Como um cansaço só de ter vivido,
Desconsolado e mudo sentimento
De ter deixado atrás parte de mim,
E saudade de não ter saudade,
Saudades dos tempos em que as tinha.

Se a minha infância agora evoco, vejo
— Estranho! — como uma outra criatura
Que me era amiga, numa vaga
Objetivada subjetividade.

Ora a infância me lembra, como um sonho,
Ora a uma distância sem medida
No tempo, desfazendo-me em espanto;
E a sensação que sinto, ao perceber
Que vou passando, já tem mais de horror
Que tristeza
[...]
E nada evoca, a não ser o mistério
Que o tempo tem fechado em sua mão.

Mas a dor é maior!

IX
Ó vestidas razões! Dor que é vergonha
E por vergonha de si-própria cala
A si-mesma o seu nexo! Ó vil e baixa
Porca animalidade do animal,
Que se diz metafísica por medo
A saber-se só baixa ...
[...]
Ó horror metafísico de ti!
Sentido pelo instinto, não na mente!
Vil metafísica do horror da carne,
Medo do amor...
Entre o teu corpo e o meu desejo dele
'Stá o abismo de seres consciente;
Pudesse-te eu amar sem que existisses
E possuir-te sem que ali estivesses!
Ah, que hábito recluso de pensar
Tão desterra o animal que ousar não ouso
O que a [besta mais vil] do mundo vil
Obra por maquinismo.

Tanto fechei à chave, aos olhos de outros,
Quanto em mim é instinto, que não sei
Com que gestos ou modos revelar
Um só instinto meu a olhos que olhem ...
[...]
Deus pessoal, Deus gente, dos que creem,
Existe, para que eu te possa odiar!
Quero alguém a quem possa a maldição
Lançar da minha vida que morri,
E não o vácuo só da noite muda
Que me não ouve.

X
O horror metafísico de Outrem!
O pavor de uma consciência alheia
Como um deus a espreitar-me!
Quem me dera
Ser a única [cousa ou] animal
Para não ter olhares sobre mim!

XI
Um corpo humano!
Às vezes eu, olhando o próprio corpo,
Estremecia de terror ao vê-lo
Assim na realidade, tão carnal.

XII
Sinto horror
À significação que olhos humanos
Contém...
[...]
Sinto preciso
Ocultar o meu íntimo aos olhares
E aos perscrutamentos que olhares mostram;
Não quero que ninguém saiba o que sinto,
Além de que o não posso a alguém dizer...

XIII
Com que gesto de alma
Dou o passo de mim até à posse
Do corpo de outros, horrorosamente
Vivo, consciente, atento a mim, tão ele
Como eu sou eu.

XIV
Não me concebo amando, nem dizendo
A alguém "eu te amo" — sem que me conceba
Com uma outra alma que não é a minha
Toda a expansão e transfusão de vida
Me horroriza, como a avaro a ideia
De gastar e gastar inutilmente
Inda que no gastar se [extraia] gozo.

XV
Quando se adoram, vividos,
Dois seres juvenis e naturais
Parece que harmonias se derramam
Como perfumes pela terra em flor.

Mas eu, ao conceber-me amando, sinto
Como que um gargalhar hórrido e fundo
Da existência em mim, como ridículo
E desusado no que é natural.

Nunca, senão pensando no amor,
Me sinto tão longínquo e deslocado,
Tão cheio de ódios contra o meu destino.

De raivas contra a essência do viver.

XVI
Vendo passar amantes
Nem propriamente inveja ou ódio sinto,
Mas um rancor e uma aversão imensos
Ao universo inteiro, por cobri-los.

XVII
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo
[...]
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.

E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar n’alguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.

Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer — espírito ou corpo —
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes.

Do mais. Pensar em dizer "amo-te"
E "amo-te" só — só isto, me angustia...

XVIII
[...] eu mesmo
Sinto esse frio coração em mim
Admirado de ser um coração
Tão frio está.

XIX
Seria doce amar, cingir a mim
Um corpo de mulher, mais frio e grave
e feito em tudo, transcendentalmente
O pensamento agrada-me, e confrange-me
Do terror de perto, e [junto]
Em sensação ao meu, um outro corpo.
Gelada mão misteriosa cai
Sobre a imaginação [...]

XX
É isto o amor? Só isto?
[...]
Sinto ânsias, desejos,
Mas não com meu ser todo. Alguma cousa
No íntimo meu, alguma cousa ali
— Fria, pesada, muda — permanece.
[P'ra] isto deixei eu a vida antiga
Que já bem não concebo, parecendo
Vaga já.

Já não sinto a agonia muda e funda
Mas uma, menos funda e dolorosa,
[Bem] mais terrível raiva
[...]
De movimentos íntimos, desejos
Que são como rancores.

Um cansaço violento e desmedido
De existir e sentir-me aqui, e um ódio
Nascido disto, vago e horroroso,
A tudo e todos...

XXI
Amo como o amor ama.
Não sei razão pra amar-te mais que amar-te.
Que queres que te diga mais que te amo,
Se o que quero dizer-te é que te amo?
[...]
Quando te falo, dói-me que respondas
Ao que te digo e não ao meu amor.
[...]
Ah! não perguntes nada; antes me fala
De tal maneira, que, se eu fora surda,
Te ouvisse todo com o coração.

Se te vejo não sei quem sou: eu amo.
Se me faltas
[...]
... Mas tu fazes, amor, por me faltares
Mesmo estando comigo, pois perguntas —
Quando é amar que deves. Se não amas,
Mostra-te indiferente, ou não me queiras,
Mas tu és como nunca ninguém foi,
Pois procuras o amor pra não amar,
E, se me buscas, é como se eu só fosse
Alguém pra te falar de quem tu amas.
[...]
Quando te vi amei-te já muito antes:
Tornei a achar-te quando te encontrei.

Nasci pra ti antes de haver o mundo.

Não há cousa feliz ou hora alegre
Que eu tenha tido pela vida fora,
Que o não fosse porque te previa,
Porque dormias nela tu futuro.
[...]
E eu soube-o só depois, quando te vi,
E tive para mim melhor sentido,
E o meu passado foi como uma 'strada
Iluminada pela frente, quando
O carro com lanternas vira a curva
Do caminho e já a noite é toda humana.
[...]
Quando eu era pequena, sinto que eu
Amava-te já longe, mas de longe...
[...]
Amor, diz qualquer cousa que eu te sinta!
— Compreendo-te tanto que não sinto,
Oh coração exterior ao meu!

Fatalidade, filha do destino
E das leis que há no fundo deste mundo!
Que és tu a mim que eu compreenda ao ponto
De o sentir...?
[...]

XXII
Pra que te falar? Ninguém me irmana
Os pensamentos na compreensão.
Sou só por ser supremo, e tudo em mim
É maior.

XXIII 
Reza por mim! A mais não me enterneço. 
Só por mim mesmo sei enternecer-me, 
Soba a ilusão de amar e de sentir em que forçadamente me detive. 
Reza por mim, por mim! Eis a que chega 
A minha tentativa [em] querer amar.

Fernando Pessoa

sábado, 7 de novembro de 2020

Ausência - Fernando Pessoa

Mesmo a ausência dela 
é uma coisa que está comigo.

E eu gosto tanto dela 
que não sei como a desejar
Se a não vejo,
imagino-a e sou forte 
como as árvores altas.

Mas se a vejo tremo,
não sei o que é feito do que sinto 
na ausência dela.

Fernando Pessoa

sábado, 31 de outubro de 2020

Isto - Fernando Pessoa

Dizem que finjo ou minto

tudo o que escrevo.

Não. Eu simplesmente sinto

com a imaginação. Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,

o que me falha ou finda,

é como que um terraço

sobre outra coisa ainda.

Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio

do que não está ao pé,

livre do meu enleio,

Sério de que não é.

Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa como Bernardo Soares
Quadro de William Bouguereau - Head of a young girl