sexta-feira, 19 de junho de 2020

Receita de mulher - Vinicius de Moraes

As muito feias que me perdoem 
mas beleza é fundamental. 

É preciso 
que haja qualquer coisa de flor em tudo isso 
qualquer coisa de dança, 
qualquer coisa de haute couture em tudo isso 
(ou então que a mulher se socialize elegantemente em azul, 
como na República Popular Chinesa)

Não há meio-termo possível. 
É preciso 
que tudo isso seja belo. É preciso 
que súbito tenha-se a impressão 
de ver uma garça apenas pousada 
e que um rosto adquira de vez em quando essa cor 
só encontrável no terceiro minuto da aurora. 

É preciso que tudo isso seja sem ser, 
mas que se reflita e desabroche 
no olhar dos homens. É preciso, 
é absolutamente preciso 
que seja tudo belo e inesperado. 

É preciso 
que umas pálpebras cerradas 
lembrem um verso de Éluard 
e que se acaricie nuns braços 
alguma coisa além da carne: que se os toque 
como no âmbar de uma tarde. 
Ah, deixai-me dizer-vos 

Que é preciso que a mulher 
que ali está como a corola ante o pássaro 
seja bela ou tenha pelo menos 
um rosto que lembre um templo e 
seja leve como um resto de nuvem: 
mas que seja uma nuvem 
Com olhos e nádegas. 

Nádegas é importantíssimo. 
Olhos então 
Nem se fala, 
que olhe com certa maldade inocente. 

Uma boca Fresca (nunca úmida!) 
é também de extrema pertinência. 

É preciso que as extremidades sejam magras; 
que uns ossos despontem, 
sobretudo a rótula no cruzar das pernas, 
e as pontas pélvicas 
no enlaçar de uma cintura semovente. 

Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: 
uma mulher sem saboneteiras 
é como um rio sem pontes. 
Indispensável. 

Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida 
a mulher se alteie em cálice, e que seus seios 
sejam uma expressão greco-romana, 
mas que gótica ou barroca 
E possam iluminar o escuro 
com uma capacidade mínima de cinco velas. 

Sobremodo pertinaz é estarem a caveira
e a coluna vertebral 
levemente à mostra; 
e que exista um grande latifúndio dorsal! 

Os membros que terminem como hastes, 
mas que haja um certo volume de coxas 
e que elas sejam lisas, 
lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem 
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio 
Apenas sensível 
(um mínimo de produtos farmacêuticos!). 

Preferíveis sem dúvida os pescoços longos 
de forma que a cabeça dê por vezes a impressão 
de nada ter a ver com o corpo,
e a mulher não lembre flores sem mistério. 

Pés e mãos devem conter elementos góticos 
Discretos.A pele deve ser frescas nas mãos, 
nos braços, no dorso, e na face 
mas que as concavidades e reentrâncias 
tenham uma temperatura nunca inferior 
a 37 graus centígrados, 
podendo eventualmente 
provocar queimaduras do primeiro grau. 

Os olhos, que sejam de preferência grandes 
e de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; 
e que se coloquem sempre para lá 
de um invisível muro de paixão 
que é preciso ultrapassar.

Que a mulher seja em princípio alta 
ou, caso baixa, que tenha a atitude mental 
dos altos píncaros. 

Ah, que a mulher dê sempre a impressão 
de que se fechar os olhos 
ao abri-los ela não estará mais presente 
com seu sorriso e suas tramas.
Que ela surja, não venha; 
parta, não vá 

E que possua uma certa capacidade 
de emudecer subitamente e nos fazer beber 
O fel da dúvida.
Oh, sobretudo 
Que ela não perca nunca, 
Não importa em que mundo 
Não importa em que circunstâncias, 
a sua infinita volubilidade de pássaro; 
e que acariciada no fundo de si mesma 
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; 
e que exale sempre o impossível perfume; 
e destile sempre o embriagante mel; 
e cante sempre o inaudível canto da sua combustão; 
e não deixe de ser nunca a eterna dançarina do efêmero; 

E em sua incalculável imperfeição 
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita 
de toda a criação inumerável.

Inspiração na Monica Bellucci fazendo 55 anos

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