quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Tudo me interessa e nada me prende - Fernando Pessoa

Tudo me interessa e nada me prende.
Atendo a tudo sonhando sempre;
fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo,
recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos;
mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa,
e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse,
da minha parte ou da parte de com quem falei.

Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti,
pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu;
mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas,
o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra,
ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu
a narrativa que me não recordava ter-lhe feito.

Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados.



Fernando Pessoa
 livro do desassossego

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