sexta-feira, 6 de maio de 2016

Rifa-se um coração - Clarisse Lispector

Rifa-se um coração quase novo.
Um coração idealista.
Um coração como poucos. 
Um coração à moda antiga. 
Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário. 

Rifa-se um coração que na realidade está um pouco usado, meio calejado, muito machucado e que teima em alimentar sonhos e, cultivar ilusões. 
Um pouco inconseqüente que nunca desiste de acreditar nas pessoas. 
Um leviano e precipitado coração que acha que Tim Maia estava certo quando escreveu... "...não quero dinheiro, eu quero amor sincero, é isso que eu espero...". 
Um idealista... 
Um verdadeiro sonhador... 

Rifa-se um coração que nunca aprende. 
Que não endurece, e mantém sempre viva a esperança de ser feliz, sendo simples e natural. 
Um coração insensato que comanda o racional sendo louco o suficiente para se apaixonar. 
Um furioso suicida que vive procurando relações e emoções verdadeiras. 

Rifa-se um coração que insiste em cometer sempre os mesmos erros. 
Esse coração que erra, briga, se expõe. 
Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões. 
Sai do sério e, às vezes revê suas posições arrependido de palavras e gestos. 
Este coração tantas vezes incompreendido. 
Tantas vezes provocado. 
Tantas vezes impulsivo. 

Rifa-se este desequilibrado emocional que abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas, mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto. 
Um coração para ser alugado, ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes. 
Um órgão abestado indicado apenas para quem quer viver intensamente, contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vida matando o tempo, defendendo-se das emoções. 

Rifa-se um coração tão inocente que se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário. 
Um coração que quando parar de bater ouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas: 

"O Senhor pode conferir. Eu fiz tudo certo, só errei quando coloquei sentimento. Só fiz bobagens e me dei mal quando ouvi este louco coração de criança que insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer" 

Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outro que tenha um pouco mais de juízo. 
Um órgão mais fiel ao seu usuário. 
Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga. 
Um coração que não seja tão inconsequente. 

Rifa-se um coração cego, surdo e mudo, mas que incomoda um bocado. 
Um verdadeiro caçador de aventuras que ainda não foi adotado, provavelmente, por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais, por não querer perder o estilo. 
Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree. 

Um simples coração humano. 
Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado. 
Um modelo cheio de defeitos que, mesmo estando fora do mercado, faz questão de não se modernizar, mas vez por outra, constrange o corpo que o domina. 
Um velho coração que convence seu usuário a publicar seus segredos e a ter a petulância de se aventurar como poeta.



Texto de Clarice Lispector,
arranjado em forma de poema pelo padre Antônio Damásio

5 comentários:

Unknown disse...

Meu amigo, não conhecia esse texto e, acredite, ele me fez chorar...me vive retratada nele...obrigada

Cassia

Pris disse...

Olá
Estou visitando o teu blog pela primeira vez.

Eu não conhecia esse poema de Clarice Lispector. Amei. Obrigada por compartilhá-lo.

Pris

Maria José Silva disse...

Ador a essência de Clarice.
Afinidade.
Isso me faz sentir menos só.
Sei que não sou (nem serei) a única
sentir.

conceição disse...

Clarice é Demais!Plagiando Mario quintana, digo: Não li esse poema, ele me leu...

Daniela disse...

Poema mais do que sincero! Emocionada em sentir cada palavra dessa poesia! Esse coração é verdadeiro!Obrigada, Prince por compartilhá-lo em seu blog.