sexta-feira, 1 de maio de 2020

A vida como ela é - A mulher das bofetadas - Nelson Rodrigues

Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio avisar:

- Olha, telefonaram pra ti.
- Homem ou mulher?
- Mulher.
- Deixou recado?
- Não. Disse que telefonava depois. Arregaçando as mangas, bufou: ok! ok!

Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:

- Aristides!

Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a princípio, não identificou.

A pessoa perguntava: 
- “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase grosseiro:
-Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.

Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:

- Sou Dorinha.

Aristides quase cai para trás, duro.

Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses, Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça. Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:

- Ah, como vai você?
- Bem. E você?
- Navegando.

E, então, Dorinha diz-lhe:

- Preciso muito falar contigo.
- Comigo? E quando?
- Já.
- Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura so­frida, pergunta: — Tu sabes que mandas em mim, não sabes?

Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais fresca do que nunca. Diante da mulher que nun­ca deixara de amar, não se conteve. Com o coração disparando, começou:

- Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.

Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:

- Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal de mim.

O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:

- Você acha que eu posso fazer má ideia de ti? Oh, Do­rinha!

Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:

- Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha confiança e… Está compreendendo?

Numa confusão total, balbuciou:

- Mais ou menos.

E ela:

- Para falar português claro: 
- estou oferecendo a minha tarde. Leva-me!

Deslumbrado, exclama:

- Oh, Dorinha!

Ele pagou, trêmulo, a despesa.

Saem e, lá fora, Dorinha observa:

- Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?

Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um apartamento em Botafogo.

Cheio de escrúpulos, bai­xa a voz: — “Eu tenho um lugar, assim, assim, discretíssimo”.

Dorinha interrompe: — “Ótimo!”.

Tomam um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:

- Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.

Protesta, veemente:

- Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!

Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dori­nha toma a iniciativa:

- Você não me beija?

Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura. Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:

- Eu não sabia que gostavas tanto de mim!

Dorinha vira-se, com divertida surpresa:

- Mas eu não gosto de ti.

Atônito, pergunta:

- E isso que aconteceu entre nós? Não conta?

A pequena está de pé:
- Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido, ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.

Ele insiste, desesperado:

- Quer dizer que não vamos continuar?

Responde:

- Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe:

- eu telefono pra ti.

Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir.

Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma criança.

Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da Terra. Dizia de si para si:

- “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o telefone: 
- era ela. Perguntava, alegremente:

- Vamos lá, outra vez?

Foram. E, no apartamento, ela suspira:

- Imagina, deu-me outra bofetada.

Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:

- Os homens são muito burros!

- Por quê?

E Dorinha:

- Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?



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