Chegou atrasado no emprego. Tirava o paletó, quando o Carvalhinho veio
avisar:
- Olha, telefonaram pra ti.
- Homem ou mulher?
- Mulher.
- Deixou recado?
- Não. Disse que telefonava depois. Arregaçando as mangas, bufou: ok! ok!
Uns dez minutos depois, estava pondo em ordem uns papéis, quando o
telefone bate novamente. O contínuo, que atendeu, berrou:
- Aristides!
Larga o serviço e apanha o telefone. Era uma voz feminina que, a
princípio, não identificou.
A pessoa perguntava:
- “Não me conheces mais?”. Aristides, já impaciente, foi quase
grosseiro:
-Quer dizer quem fala? Estou ocupadíssimo e não posso perder tempo.
Há uma pausa e, finalmente, a voz responde:
- Sou Dorinha.
Aristides quase cai para trás, duro.
Dorinha era o seu amor jamais esquecido ou, melhor, a sua dor-de-cotovelo
confessa e imortal. Que idade teria ela, no momento? Uns vinte e cinco
anos. Tinham se namorado na adolescência. Por um motivo bobo, haviam
brigado. E quando Aristides, devorado pela nostalgia, quis voltar, ela já
estava apaixonada por um outro, o Gouveia. Durante uns seis meses,
Aristides andou pensando, dia após dia, em meter uma bala na cabeça.
Acabou renunciando ao suicídio, mas ficou-lhe, para sempre, o sofrimento
surdo. Dorinha casara-se com o Gouveia, tinha dois filhos de Gouveia. E
sempre que a via, acidentalmente, na rua, Aristides precisava tomar um
pileque dantesco. E, súbito, ela telefona, a inesquecível, a
insubstituível Dorinha! Ao impacto da surpresa, gagueja:
- Ah, como vai você?
- Bem. E você?
- Navegando.
E, então, Dorinha diz-lhe:
- Preciso muito falar contigo.
- Comigo? E quando?
- Já.
- Pois não. Estou às tuas ordens. — E, na sua ternura sofrida, pergunta:
— Tu sabes que mandas em mim, não sabes?
Combinaram o encontro, para daí a vinte minutos, numa sorveteria da rua
da Carioca.
Aristides largou o serviço, que estava atrasadíssimo, e correu para o
elevador. Daí a dez minutos, estava no local. Encontrou-a mais linda, mais
fresca do que nunca. Diante da mulher que nunca deixara de amar, não se
conteve. Com o coração disparando, começou:
- Sou todo teu. Nunca deixei de te amar.
Tomando refresco, com canudinho, Dorinha vai falando:
- Eu preciso de um favor teu. Mas quero que prometas que não pensarás mal
de mim.
O espanto do rapaz foi uma coisa sincera e profunda:
- Você acha que eu posso fazer má ideia de ti? Oh, Dorinha!
Então, sem desfitá-lo, Dorinha disse:
- Meu marido partiu hoje, ao meio-dia, para São Paulo. De hoje para
amanhã, eu sou uma espécie de solteira ou, então, de viúva. De qualquer
maneira, uma mulher livre. Pensei em você, que merece toda a minha
confiança e… Está compreendendo?
Numa confusão total, balbuciou:
- Mais ou menos.
E ela:
- Para falar português claro:
- estou oferecendo a minha tarde.
Leva-me!
Deslumbrado, exclama:
- Oh, Dorinha!
Ele pagou, trêmulo, a despesa.
Saem e, lá fora, Dorinha observa:
- Mas não devo me expor. Arranja um interior, sim?
Acontece que Aristides mantinha, de sociedade com um amigo, um
apartamento em Botafogo.
Cheio de escrúpulos, baixa a voz: — “Eu tenho um
lugar, assim, assim, discretíssimo”.
Dorinha interrompe: — “Ótimo!”.
Tomam
um táxi, que ia passando. A caminho de Botafogo, a pequena começa:
- Você, naturalmente, está espantado e querendo uma explicação.
Protesta, veemente:
- Explicação nenhuma! Basta o fato em si! Você está aqui, comigo, a meu
lado, e não interessam os motivos, argumentos, nada!
Quando entraram, uns quinze minutos depois, no apartamento, Aristides não
sabia o que dizer. Ainda uma vez, Dorinha toma a iniciativa:
- Você não me beija?
Ofereceu-lhe a boca. Aristides experimentou uma espécie de vertigem. O
primeiro beijo, depois de tanto tempo, foi uma dessas coisas que marcam
para sempre. Em seguida, ele a carrega no colo, como uma noiva de
fita de cinema. Uma hora e pouco depois, já a noite entrara no
apartamento e Dorinha estava diante do espelho, refazendo a pintura.
Aristides veio, por trás, beijar-lhe os ombros nus; e suspira:
- Eu não sabia que gostavas tanto de mim!
Dorinha vira-se, com divertida surpresa:
- Mas eu não gosto de ti.
Atônito, pergunta:
- E isso que aconteceu entre nós? Não conta?
A pequena está de pé:
- Era a explicação que eu queria te dar e que tu recusaste. O meu marido,
ontem, discutiu comigo e me deu uma bofetada. Estou aqui por causa da
bofetada. Mas amo o meu marido e só meu marido.
Ele insiste, desesperado:
- Quer dizer que não vamos continuar?
Responde:
- Depende. Se meu marido me bater outra vez, já sabe:
- eu telefono pra ti.
Sem uma palavra, na maior humilhação de sua vida, deixou-a partir.
Mas quando a porta fechou-se atrás da pequena, ele caiu, de joelhos, no
meio do quarto, mergulhou o rosto nas mãos e soluçou como uma
criança.
Durante uma semana, ele foi o ser mais humilhado e mais ofendido da
Terra. Dizia de si para si:
- “A cínica! A cínica!”. E pior é que era incapaz de sentir atração por
qualquer outra mulher. Uns quinze dias depois, ele atende o
telefone:
- era ela. Perguntava, alegremente:
- Vamos lá, outra vez?
Foram. E, no apartamento, ela suspira:
- Imagina, deu-me outra bofetada.
Encontraram-se outras vezes, sempre em função de novas bofetadas. Até
que, uma tarde, entre um beijo e outro, ela exclama:
- Os homens são muito burros!
- Por quê?
E Dorinha:
- Tu não percebeste que não houve bofetada nenhuma? Que meu marido não me
esbofeteou nunca? E que eu te amo, te amo e te amo?
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